2 de janeiro de 2010

O menino que não tinha brinquedos II

Incrível. Ao fim de tantos anos e quando menos o esperava, se é que algum vez tive essa esperança, hoje vislumbrei-o, por entre um magote de gente que, absuradmente, me pareceu conhecer também.
Mas, sem qualquer dúvida, era mesmo ele. Aqueles olhos nunca enganariam estes, lá estavam eles, absorvendo, como sempre, tudo o que se passava em redor. Pareceu-me fugazmente entrever ainda neles aquela centelha de ânsia, que não ansiedade, de sofreguidão de saber, de compreender. Era o meu menino que não tinha brinquedos, era mesmo ele. Como saltei de alegria, pois estava vivo.

Mas o menino agora é velho como eu, ou até talvez pareça ainda nais velho do que eu, será que ainda é o meu menino?

Estranhamente é tão alto como eu, e quase tão barrigudo, tem rugas e um ar cansado, parece alguém que está prestes a desistir da sua busca, ou que prescimndiu do seu rumo. Que lhe terá acontecido? tenho que saber, não posso deixar de saber. Indelévelmente as nossas vidas estão cruzadas, o que foi que lhe aconteceu? Como, porquê? Não posso deixar de o saber.

Tentei chegar-me a ele o mais possível, ao alcance da voz, mas em redor o magote de gente parecia que mais se apertava, dificultando sobremaneira a minha vontade de lhe tocar, falar com ele, de nos revermos. De onde veio tanta gente para nos separar?

Então, num rápido mas feliz acaso os nossos olhos encontraram-se, como há séculos se não encontravam, não durou mais do que o breve tempo de um sorriso até sermos novamente engolidos no turbilhão de gente que nos rodeava, mas foi o suficiente para aquele brilho especial ao canto dos seus olhos me contarem a história dos passos que o meu menino, que não tinha nenhum brinquedo, foi dando por esta vida e este tempo. Tudo o que o alegrou ou entristeceu lá estava, no registo daquele olhar que hei-de reconhecer sempre.

Agora já sei das suas tristezas e alegrias, das suas conquistas e frustrações, das suas dores, dos seus risos, da agonia e da felicidade, de tudo o que sulcou de rugas aquele olhar que para mim sempre foi especial.

Num bocadito de segundo tudo isto me foi transmitido, assim como eu lhe transmiti tudo o que eu gostaria que ele soubesse, foi mesmo só um bocadito de segundo e foi o suficiente para o reconhecimento daquelas olheiras, daquelas rugas, daquele breve sorriso mas tão intenso e tão imenso como todos os mares juntos num só.

Há  mais que uma réstia de esperança no brilho daquele olhar, há uma estrada a ser descoberta, traçada e rasgada nesta selva a que chamamos Vida, naquela centelha de olhar aliviou-me ver que o meu menino que não tinha brinquedos ainda era capaz de fabricar os seus, como sempre o fizera, que ainda lá estavam a imaginação, a vontade, a alegria e o querer e o poder dos olhos que tudo furam, procurando muito para além do que é visível um outro modo de olhar.

As saudades que eu tinha dele, e que afinal eram as mesmas que ele tinha de mim. Que alegria o reconhecimento, que doçura na transmissão de força, que sensação de paz, de milagre no limite.

Sei que a partir de agora vou vê-lo todos os dias, que não haverá mais ninguém a tentar separar-nos, que os nossos caminhos nunca mais estarão cruzados, mas seguirão paralelos passo a passo. Sei até que nem serão dois caminhos mas apenas um só, e que assim sempre foram e assim sempre serão, desde que eu não largue nunca mais a minha própria mão.

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