2 de março de 2010

A revolta do menino que não tinha brinquedos.

6:35 acordar, levantar e lavar sem uma palavra, nem bom dia. ao mesmo tempo olhámos para o espelho e tive um susto.
como está velho, quase desfigurado, que olhos fundos e semicerrados, que rugas marcadas, que pele queimada....
tenho a sensação de que foi isso mesmo que ele viu, tenho a certeza que foi.
vou esperar para ver o que dá, para já está muito pensativo, concentrado em alguma coisa que quer atirar cá para fora e as duas rugas no meio das sobrancelhas não enganam, não vai ser macio.

11:05 veio tão de chofre que me assustei:- Olha lá mas tu estás a ficar ainda mais parvo do que eras? O tom de voz era baixo, contido, pausado. esperei, devia haver mais pois aquela era uma pergunta retórica, e veio:

- Quando é que paras? já foi dito uma ou duas oitavas acima, mas a voz saía contida, como se preparasse uma arrancada, conheço-o bem.

- Não aprendeste nada comigo? Claro que não era uma pergunta para eu responder, continuei à espera.Grandes silêncios entre as perguntas, para eu poder "moer" e digerir, mas a contenção era latente, a qualquer momento esperava a explosão. E ela veio. Olá se veio....

- Essa é a vida que queres para ti? Chamas a isso viver? Onde estavas quando me forjei no aço? Que fazias quando fabricava armaduras e armas para construir a Vida? Não lembras as alegrias das vitórias e a tristeza das derrotas em cada batalha? Em todas as guerras? Em cada renascer?

Deus, como o tom tinha subido e a contenção se ausentado. Havia agora desespero, raiva, impotência, perigo.

- Prisioneiro em casa há mais de um ano sem matares ninguém, sem nada roubares, escravo dos tratamentos, dos comprimidos, das mariquices de sobreviver, não és tu. Não podes ser tu. Porque não te desprendes? Faz o que tens a fazer e acaba com essas merdas que te dão uma qualidade de vida de merda e pára. Já não tens mais para lutar, ou também estás cego?

-Vai-te #&$"?(%. Saiu-me, mesmo sem dar por isso. Como tens tomates para me dizer uma coisa dessas? Onde estava quando te forjaste em aço? A dar ar à forja e o meu sangue para o temperares, as armaduras que construíste, é verdade, foram feitas com os meus desenhos e as armas vieram da minha imaginação. E mais, muito trabalho me deu cobrir-te de carne para não pareceres um monstro das galáxias distantes, e muito esforço tive que usar para adoçar as tuas palavras quando não combatias e muito amor tive que usar para afagar o que não destruías. E por vezes não havia tanta alegria como isso, nem tristeza, nas vitórias ou derrotas, não me lembro de uma com um oponente do nosso tamanho, ou eram maiores ou mais pequenos, eram os que apareciam. Uma coisa é certa, sempre fomos justos.

De repente as minhas poucas forças esvaíram-se e calei-me, pensando no que de verdade tinha ouvido. Seria esta a minha vida até acabar? Se assim fosse ele tinha razão, devia deixar a Natureza seguir o seu curso e parar com o potássio, a platina, sei lá que mais drogas me metem no corpo, que chego a pensar se não morro da doença, seguramente vou morrer da cura.

Mas e a Catarina, o Miguel e a Alice? Como os posso defraudar, a eles e às suas expectativas? E como mandar para o lixo todo o sofrimento por que eles já passaram também (e continuam a passar)?
 Não o posso fazer de maneira alguma, não é justo. O pior é que também não é justo para mim. Ora sendo a Justiça uma das coisas que mais prezo, estou a ver que tenho que pensar até onde vai o limite de um e dos outros. Mas ainda me parece cedo, vou dar mais um benefício da dúvida a este ciclo de quimioterapia e então pensarei sobre isso, a frio, muito a frio, pesando todos os prós e contras e tomarei uma decisão. Justa.

- Olha, sabes que mais? Vai-te #$%"/(&. A minha voz ressoou firme e clara, suficientemente forte para acabar a revolta do menino que não tinha brinquedos. Eu sei que também ele sofre, talvez mais do que eu, porque ele sempre foi a parte forte e agora está cansado de tantas guerras.

3 comentários:

  1. Diz ao menino que nunca teve brinquedos que o Ulisses que sempre conheci lutou sempre e nunca baixou os braços.

    Diz-lhe que é natural que o Ulisses esteja cansado e que almeja um descanso de corpo e alma; um desejo de não sentir dor, mas que não vai desistir. Que felizmente não está cego pois se o tivesse há muito que tinha desistido.

    Diz-lhe que ainda vestes a armadura. Que às vezes não tens força para a envergar, mas que não desistes, não pelos outros, mas por ti próprio.

    Das poucas vezes que o disse, repito-o: como eu gosto de ti primo. E apesar de longe, nunca estive tão perto de ti.

    Luto, solidária, a teu lado, como vento que te passe por cima do ombro, embora não me vejas, embora não me sintas.

    Lembro-me de um pequeno livro que "herdei" de ti, que se chamava algo como Amigo é... E Amigo é aquele que bate com os dedos na madeira quando tens algo difícil para fazer (uma das frases do livro, que não sei bem se será tal e qual assim ou se transmite apenas a ideia)

    Beijos

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  2. Poema do Menino Jesus

    Num meio-dia de fim de Primavera
    Tive um sonho como uma fotografia.
    Vi Jesus Cristo descer à terra.
    Veio pela encosta de um monte
    Tornado outra vez menino,
    A correr e a rolar-se pela erva
    E a arrancar flores para as deitar fora
    E a rir de modo a ouvir-se de longe.

    Tinha fugido do céu.
    Era nosso demais para fingir
    De segunda pessoa da Trindade.
    No céu tudo era falso, tudo em desacordo
    Com flores e árvores e pedras.
    No céu tinha que estar sempre sério
    E de vez em quando de se tornar outra vez homem
    E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
    Com uma coroa toda à roda de espinhos
    E os pés espetados por um prego com cabeça,
    E até com um trapo à roda da cintura
    Como os pretos nas ilustrações.
    Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
    Como as outras crianças.
    O seu pai era duas pessoas -
    Um velho chamado José, que era carpinteiro,
    E que não era pai dele;
    E o outro pai era uma pomba estúpida,
    A única pomba feia do mundo
    Porque nem era do mundo nem era pomba.
    E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
    Não era mulher: era uma mala
    Em que ele tinha vindo do céu.
    E queriam que ele, que só nascera da mãe,
    E que nunca tivera pai para amar com respeito,
    Pregasse a bondade e a justiça!

    Um dia que Deus estava a dormir
    E o Espírito Santo andava a voar,
    Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
    Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
    Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
    Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
    E deixou-o pregado na cruz que há no céu
    E serve de modelo às outras.
    Depois fugiu para o Sol
    E desceu no primeiro raio que apanhou.
    Hoje vive na minha aldeia comigo.
    É uma criança bonita de riso e natural.
    Limpa o nariz ao braço direito,
    Chapinha nas poças de água,
    Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
    Atira pedras aos burros,
    Rouba a fruta dos pomares
    E foge a chorar e a gritar dos cães.
    E, porque sabe que elas não gostam
    E que toda a gente acha graça,
    Corre atrás das raparigas
    Que vão em ranchos pelas estradas
    Com as bilhas às cabeças
    E levanta-lhes as saias.

    A mim ensinou-me tudo.
    Ensinou-me a olhar para as coisas.
    Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
    Mostra-me como as pedras são engraçadas
    Quando a gente as tem na mão
    E olha devagar para elas.

    (continua)

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  3. Diz-me muito mal de Deus.
    Diz que ele é um velho estúpido e doente,
    Sempre a escarrar para o chão
    E a dizer indecências.
    A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
    E o Espírito Santo coça-se com o bico
    E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
    Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
    Diz-me que Deus não percebe nada
    Das coisas que criou -
    "Se é que ele as criou, do que duvido." -
    "Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
    Mas os seres não cantam nada.
    Se cantassem seriam cantores.
    Os seres existem e mais nada,
    E por isso se chamam seres."
    E depois, cansado de dizer mal de Deus,
    O Menino Jesus adormece nos meus braços
    E eu levo-o ao colo para casa.

    Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
    Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
    Ele é o humano que é natural.
    Ele é o divino que sorri e que brinca.
    E por isso é que eu sei com toda a certeza
    Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

    E a criança tão humana que é divina
    É esta minha quotidiana vida de poeta,
    E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
    E que o meu mínimo olhar
    Me enche de sensação,
    E o mais pequeno som, seja do que for,
    Parece falar comigo.

    A Criança Nova que habita onde vivo
    Dá-me uma mão a mim
    E outra a tudo que existe
    E assim vamos os três pelo caminho que houver,
    Saltando e cantando e rindo
    E gozando o nosso segredo comum
    Que é saber por toda a parte
    Que não há mistério no mundo
    E que tudo vale a pena.

    A Criança Eterna acompanha-me sempre.
    A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
    O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
    São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

    Damo-nos tão bem um com o outro
    Na companhia de tudo
    Que nunca pensamos um no outro,
    Mas vivemos juntos e dois
    Com um acordo íntimo
    Como a mão direita e a esquerda.

    Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
    No degrau da porta de casa,
    Graves como convém a um deus e a um poeta,
    E como se cada pedra
    Fosse todo o universo
    E fosse por isso um grande perigo para ela
    Deixá-la cair no chão.

    Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
    E ele sorri porque tudo é incrível.
    Ri dos reis e dos que não são reis,
    E tem pena de ouvir falar das guerras,
    E dos comércios, e dos navios
    Que ficam fumo no ar dos altos mares.
    Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
    Que uma flor tem ao florescer
    E que anda com a luz do Sol
    A variar os montes e os vales
    E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

    Depois ele adormece e eu deito-o.
    Levo-o ao colo para dentro de casa
    E deito-o, despindo-o lentamente
    E como seguindo um ritual muito limpo
    E todo materno até ele estar nu.

    Ele dorme dentro da minha alma
    E às vezes acorda de noite
    E brinca com os meus sonhos.
    Vira uns de pernas para o ar,
    Põe uns em cima dos outros
    E bate palmas sozinho
    Sorrindo para o meu sono.

    Quando eu morrer, filhinho,
    Seja eu a criança, o mais pequeno.
    Pega-me tu ao colo
    E leva-me para dentro da tua casa.
    Despe o meu ser cansado e humano
    E deita-me na tua cama.
    E conta-me histórias, caso eu acorde,
    Para eu tornar a adormecer.
    E dá-me sonhos teus para eu brincar
    Até que nasça qualquer dia
    Que tu sabes qual é.


    Esta é a história do meu Menino Jesus.
    Por que razão que se perceba
    Não há-de ser ela mais verdadeira
    Que tudo quanto os filósofos pensam
    E tudo quanto as religiões ensinam ?

    Alberto Caeiro

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