12 de dezembro de 2009

O menino que não tinha brinquedos

Comigo acontece sempre, nunca falha.

Dando volta umas coisa velhas, não guardadas mas abandonadas, arrecadadas, enfim, por ali, encontrei uma foto antiga de um puto que conheci há muitos, muitos anos atrás ( posso dizer assim porque tenho uma já provecta idade) e a quem, infelizmente, perdi o rasto, digo com mita pena minha porque eu adorava aquele puto.
Conheci e fui muito amigo de toda a família, gente pobre, não no limiar da pobreza, mas contando os tustos a maior parte do tempo, gente humilde, honesta, trabalhadora, mas pobres.

Uma coisa me doía muito sobre aquele puto: o menino não tinha brinquedos, não é não tinha brinquedos, não tinha nenhum brinquedo. E eu não podia dar-lhos.

Mas aquele menino espantava-me cada vez que estava com ele, contráriamente ao que se poderia pensar ele não era um menino triste, muito longe disso, era todo riso fácil, olhos esbugalhados nas histórias que lhe contávamos, absorvendo cada palavra como se não viesse mais nenhuma a seguir à última, acreditando em cada fantasia e transformando-a com a sua fértil imaginação. E ficando FELIZ por isso. Era muito fácil de contentar.
Era acima de tudo um menino que não pedia nada, nada, mas mesmo nada e que aceitava que tinha o que podia ter e que era assim porque era assim, porque o resto da família também não tinha as coisa todas que as outras famílias tinham. Deus, como aquele puto era fácil de contentar!!

E a ternura? Como ele era capaz de gostar, apenas gostar. Das coisas, das pessoas, do tempo, da escola, dos colegas, de tudo, e sobretudo dos livros, sim dos livros, jornais, tudo o que tivesse palavras impressas ele adorava.
Lembro-me quando ele ainda não sabia ler de pedir à mãe que lhe "lesse" o "Rufino", que era uma tira de banda desenhada que existia no falecido Diário Popular, diáriamente. Não sei como o jornal aparecia lá em casa dele mas recordo-me de sempre o ver quando encontrava o puto. Sei que, por volta dos cinco anos  o seu maior desejo era ir para a escola para pder "ler" o "Rufino" sózinho, sem ajuda. Era curtido à brava, porque o "Rufino" não tinha letras, eram três quadrados em que uma situação se desenvolvia sózinha, sem palavras, apenas com a evolução dos desenhos.

E ele lá foi para a escola (um dia hei-de contar a história deste menino aos meus Filhos, a história toda) era sempre o melhor da turma, desde a primeira classe até ao fim do extinto Ciclo Preparatório, penso que hoje corresponde ao 6ª ano, teve Bolsa de estudos da Gulbenkian - que era um bom dinheirinho naquela altura - o que ajudou a sua mãe um bom bocado no que às finanças mensais dizia respeito, enfim, era um valente puto por quem eu nutria um carinho muito especial e acima de tudo uma enorme admiração.

Tudo isto só porque me lembrei que mesmo com bolsa de estudo e tudo, o menino continuou sem ter brinquedos, nenhum brinquedo.

Talvez por causa disso ele tenha descoberto a palavra impressa e devorava tudo o que conseguia, sentado no chão da marquise, com as costas apoiadas numa parede e os pés na outra de frente. E ali ficava ele, "tempos infinitos" como dizia a minha Avó, com os tais olhos que tudo absorviam, devorando as palavras, porque o menino vinha da escola e estava o resto do dia sózinho em casa, até à noite, quando a mãe vinha do trabalho.

Tenho tantas saudades desse puto a quem perdi o rasto há tantos anos, tantos que até dói. mas a Vida leva-nos por caminhos que nem sempre são convergentes.

Tenho pena que esse puto não tivesse nasccido mais tarde, só isso, podia ter nascido na mesma família e crescido da mesma forma, mas que fosse amanhã o seu primeiro dia de aulas. adorava que isso tivesse sido assim.

Lembro-me como se fosse hoje o último dia em que o vi. Daqueles olhos absorventes nesse dia escorriam muitas e silenciosas lágrimas, teria talvez oito ou nove anos, acho que foi nessa noite que deixou de ser um menino sem brinquedos para se tornar num repente um homem sózinho que sabia que a sua luta começava ali e que as suas armas eram como os seus brinquedos, teria que as fabricar, sózinho, como sempre.

É pá, o que eu gramava o puto.

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